Confesso: estou atônito. E olha que, como professor, jornalista e cidadão que acompanha de perto os meandros da política brasileira, já vi de tudo um pouco. Mas o escândalo do “auxílio-iPhone” concedido pela Procuradoria-Geral do Município de São Paulo consegue ultrapassar as fronteiras do absurdo e escancarar uma distopia institucionalizada que, infelizmente, parece cada vez mais normalizada. R$ 22 mil — isso mesmo, vinte e dois mil reais — liberados para cada procurador adquirir eletrônicos de uso pessoal, como iPhones, MacBooks, monitores gamer e Kindles, com direito a reembolso mediante nota fiscal. E tudo isso disfarçado sob a justificativa de que se trata de um “instrumento de trabalho”.
Segundo a Procuradoria, os valores vêm de um fundo abastecido por honorários advocatícios de sucumbência — isto é, pagos por devedores que perderam ações judiciais movidas pela própria prefeitura. Na interpretação dos beneficiários, como não são recursos diretamente oriundos do orçamento público, estaria tudo dentro da legalidade. Mas aqui é que mora o engodo: ainda que juridicamente se tente dissociar esse dinheiro do erário, ele nasce, sim, de uma lógica pública. É dinheiro movimentado por uma estrutura pública, obtido por meio de ações promovidas por servidores públicos, em nome de uma instituição pública. Querer pintar isso com cores privadas é uma tentativa indecente de escapar do debate ético que a medida exige.
E pior: o valor não é usado para a compra de equipamentos que ficam sob controle do órgão, como deveria ocorrer em qualquer estrutura minimamente séria. O produto comprado vira patrimônio pessoal do procurador. Um presente luxuoso, bancado com verba “legalizada”, mas que deveria, no mínimo, pertencer à instituição. Afinal, se há necessidade de computadores e celulares melhores para o exercício da função, que sejam comprados pelo órgão e registrados no patrimônio público, como qualquer mesa ou impressora que entra numa repartição.
O que me estarrece é que tudo isso acontece sem pudor. Com naturalidade. Com ares de normalidade burocrática. E enquanto os procuradores se dão ao luxo de comprar o que quiserem, em parte do mesmo município crianças estudam em salas improvisadas, unidades de saúde carecem de equipamentos básicos e milhares de famílias lutam por um prato de comida. Essa disparidade revela uma falência moral do sistema: o que deveria ser exceção virou regra, e o que deveria causar indignação virou procedimento administrativo.
Pense no cidadão comum. No trabalhador que tenta comprar um notebook para o filho estudar e é forçado a parcelar em vinte vezes. Pense na professora da rede municipal que leva material de casa para dar aula, no estudante da periferia que compartilha o celular com os irmãos para fazer uma atividade escolar. Essas pessoas sustentam a máquina pública — mas são invisíveis quando se trata de distribuí-la. Porque o auxílio-iPhone não é só um escândalo de cifras: é uma afronta simbólica a quem paga a conta do privilégio.
E aí me pergunto: quando foi que nos tornamos tão insensíveis? Quando passamos a aceitar com naturalidade que servidores de alto escalão, com salários que beiram os R$ 50 mil mensais, ainda precisem de um “bônus” extra para comprar equipamentos que qualquer trabalhador compra com esforço próprio? Que tipo de servidor público é esse, que exige o que a maioria da população jamais terá acesso, e ainda se acha injustiçado ao ser criticado?
Eu continuo perplexo. Não pela ousadia de quem recebeu, mas pela passividade de quem permite. Essa medida não é apenas imoral. Ela é perigosa. Porque abre precedentes, escancara portas e fortalece a cultura do privilégio. Ela nos diz, em alto e bom som, que neste país há duas categorias de cidadão: os que sustentam o sistema — e os que vivem dele.
E se não houver um freio, uma reação institucional e social contundente, corremos o risco de ver o funcionalismo de elite se transformar numa casta inalcançável, blindada por regras próprias e alheia à realidade nacional. O auxílio-iPhone não é um caso isolado: é um sintoma. Um reflexo cristalino da distorção ética que tomou conta de parte da administração pública brasileira. E contra isso, não há ironia que baste. É preciso denunciar, expor, constranger — e exigir mudança.
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